O pagamento de propinas a autoescolas tem permitido que analfabetos
consigam ilegalmente carteiras de motorista em Mossoró, Rio Grande do
Norte. Segundo reportagem do
Fantástico, o pagamento nem sempre é em dinheiro vivo. Nesta semana, 11 acusados de vender habilitações foram presos.
“A gente tem que arranjar camarão, arranjar peixe”, diz um dos
suspeitos nas negociações ilegais, que acontecem na antessala do chefe
do Detran em Mossoró. Até lagosta servia como propina, segundo a
reportagem.
Para mostrar todas as etapas desse esquema fraudulento, um policial se
passou por analfabeto. O policial pagou R$ 2 mil para conseguir a
habilitação.
Ao entrar na autoescola, inventou uma história. Disse que o patrão dele
é quem iria pagar a propina. “Ele disse: ‘se for preciso pagar, você
pague’”, diz o suposto analfabeto.
A lei proíbe que analfabetos tirem habilitação. Flávia Arruda, a dona
da autoescola mostrada na reportagem, garante que é possível. “Confia em
mim. Não interessa. Você tá fazendo comigo”, diz Flávia. “Tá certo”,
responde o policial disfarçado. Em dois meses, a habilitação ficou
pronta.
Em Mossoró, Rio Grande do Norte, o aumento de infrações e a descoberta
de motoristas que mal conseguiam escrever o nome chamaram a atenção da
Polícia Rodoviária Federal.
“Uma parada mais brusca, uma ultrapassagem inadequada e, na própria
autuação, a assinatura já denunciava que havia algum tipo de
irregularidade”, diz Rosemberg Alves de Medeiros, inspetor da Polícia
Rodoviária Federal.
Durante nove meses, foram investigados donos de autoescolas,
instrutores, despachantes e funcionários públicos. Os promotores
descobriram que a pessoa conseguia a carteira mesmo fazendo barbeiragem
na prova de direção. “Foi terrível. Eu saí com ela, ela subiu no
canteiro central”, diz avaliador e instrutor.
Entre os investigados está Maria do Socorro Arruda, uma senhora de 67
anos. Ela foi flagrada em escutas telefônicas dizendo o preço da
habilitação para um grupo de 30 analfabetos. “Manda os analfabetos pra
mim que eu resolvo. É dois mil conto. 500 é meu. E o resto, a gente
resolve”, responde uma mulher não identificada.
O analfabeto tem que aprender a pelo menos escrever o nome que irá na
carteira. O policial, que fingiu não saber ler nem escrever, filmou
Flávia Arruda, a dona da autoescola, dando as aulas. Nas imagens, ela
ensina a escrever "Domingos".
Segundo as investigações, Flávia ainda tinha acesso às provas do
psicotécnico com antecedência. “Tinha aqui três bicicletas desenhadas e
aqui não tinha nenhuma. Aqui tinha um carro de mão, uma carroça, uma
bicicleta. Bom, se tem três bicicletas, tá faltando... Outra bicicleta”,
mostra ela.
Analfabeto ou não, ninguém precisava participar das aulas práticas e
teóricas. Era só pôr a digital no aparelho que registra a presença e ir
embora.
Segundo a polícia, a venda de habilitações em Mossoró ficou tão
conhecida que a cidade começou a receber uma espécie de turismo da
fraude. Até moradores de outros estados vão comprar o documento.
“Isso era um comércio, uma feira escancarada, um esquema de corrupção,
tendo como base a certeza da impunidade”, afirma Manoel Onofre Neto,
procurador-geral de justiça do Rio Grande do Norte.
O feirão da habilitação funcionava no próprio Departamento de Trânsito,
em Mossoró. De acordo com as investigações, Jader da Costa, o chefe do
Detran, era um dos que recebiam propina para liberar a habilitação.
As investigações mostram que as habilitações chegavam a custar R$ 4
mil. O interessado na compra do documento tinha a opção de pagar a
propina com peixe, camarão e lagosta. “Tem como arranjar uma
lagostazinha, não, meu filho?”, pergunta Socorro, por telefone.
Geralmente, o dinheiro vivo da propina ia para autoescolas e
despachantes. Já os funcionários públicos preferiam não levantar muita
suspeita, segundo a reportagem.
Entre os 11 presos está Flávia Arruda, a dona da autoescola onde o
policial conseguiu tirar a carteira se passando por analfabeto. Socorro,
que é mãe dela, também foi pra cadeia. As duas negam participação no
esquema.
Outras três autoescolas estão proibidas de funcionar e as carteiras
compradas serão canceladas. O chefe do Detran em Mossoró foi preso em
casa. Nesta geladeira, a polícia encontrou camarão e lagosta. Jader da
Costa, que se diz inocente, foi exonerado do cargo pelo governo do
Estado.
Segundo o presidente do Grupo Nacional de Combate ao Crime Organizado,
formado por promotores, há investigações de fraudes nos Detrans de quase
todo o Brasil. “Quando se fala em Detran, sempre se tem alguma
restrição em termos de corrupção ou de fraudes”, diz Oswaldo Trigueiro
do Valle Filho, procurador-geral de justiça da Paraíba.
O Ministério Público descobriu na Paraíba, ao cruzar as informações do
Cadastro Eleitoral com as do Detran, que o estado tem 50 mil analfabetos
que conseguiram tirar a habilitação. “Hoje, virou uma rotina a gente
ter flagrantes de autoescolas repassando CNHs pelo correio”, conta
Oswaldo Trigueiro do Valle Filho, procurador-geral de justiça da
Paraíba.
Morador de João Pessoa, João Batista da Silva, 37 anos, foi um dos
analfabetos que compraram a carteira de motorista no estado. “O que você
desse pra ele copiar, ele copiava igual. Mas ele não sabia ler”, conta
Tereza da Silva Ferreira, prima de João.
Seis meses depois de comprar a habilitação, João morreu num acidente de trânsito.
“É um esquema que existe em diversos estados e o Ministério Público, as
polícias, precisam coibir esse tipo de fraude, esse crime de corrupção,
que põe em jogo a vida humana”, declara Manoel Onofre Neto,
procurador-geral de justiça do Rio Grande do Norte.