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domingo, 6 de abril de 2014

Resgatados em navio denunciam rotina 



exaustiva e assédio psicológico


Funcionários dizem que chegaram a comer macarrão cozido em luvas. 
Por meio de nota, MSC não reconhece denúncias dos funcionários.

Henrique MendesDo G1 BA
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11 profissionais resgatados de navio, que trabalhavam em carga horária análoga ao trabalho escravo (Foto: Henrique Mendes / G1)11 profissionais resgatados de navio, que
trabalhavam em carga horária análoga ao
trabalho escravo (Foto: Henrique Mendes / G1)
Xingamentos, turnos de trabalho de até 22 horas e mulheres assediadas sexualmente. Estes foram alguns relatos dos 11 profissionais resgatados do navio MSC Magnífica, na terça-feira (1º), sob a suspeita de estarem atuando em condições análogas ao trabalho escravo. Alguns deles contaram que perderam 14 quilos e precisaram cozinhar macarrão instantâneo em luvas para conseguirem se alimentar.
Os tripulantes retirados da embarcação relataram, na manhã desta sexta-feira (4), as circunstâncias das viagens em depoimentos prestados na sede da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego da Bahia (SRTE), localizada no bairro da Piedade, em Salvador.
Em nota, a assessoria de comunicação da MSC Cruzeiros informou que o Ministério do Trabalho e Emprego esteve a bordo do MSC Magnifica na terça-feira e alegou irregularidades na jornada de trabalho de 13 tripulantes brasileiros, solicitando-os a desembarcar. Destes, 11 aceitaram desembarcar, mas dois se recusaram e decidiram continuar trabalhando a bordo. Ainda segundo a assessoria da MSC, a empresa está em conformidade com as normas de trabalho nacionais e internacionais e vai colaborar com as autoridades competentes. (Confira abaixo nota divulgada pela empresa na íntegra).
Com ensino médio completo e inglês fluente, o cearense Elianai Vigon, de 24 anos, que embarcou no navio em dezembro de 2013, relata que viveu três meses de exploração e humilhação trabalhando com ajudante de garçom. Com uma experiência profissional em um outro navio da mesma companhia, ele disse que foi surpreendido no cruzeiro por uma carga diária de trabalho superior a 11 horas, que destaca ser diferente do combinado por contrato.
"Percebi uma falta de padronização da companhia, já que a minha experiência anterior foi bem diferente. Começamos a fazer trabalhos extras não-remunerados e a exercer atividades que caracterizavam desvio de função, como lavar refeitório, restaurante, janelas e portas. Éramos obrigados a fazer, sob o risco de sofrer advertência. Com três [advertências], a pessoa é mandada para casa por justa causa", relata as pressões sofridas.
Vigon ainda conta que os profissionais que atuavam no navio precisavam pegar comida escondida nos restaurantes, já que "a comida do refeitório era 'indegustável'", relatou. Sob o medo de serem advertidos por causa do "roubo" da comida, o ajudante de garçom relata que a maioria dos colegas preferia comer macarrão instantâneo do que os alimentos que eram servidos para os funcionários. "Não tínhamos fogão, mas as torneiras do navio davam opção de água quente ou fria. Então, colocávamos [o macarrão] dentro de luvas e depois colocávamos as luvas dentro da água quente. Asssim fizemos várias vezes", confessou.
Funcionários de navio (Foto: Henrique Mendes / G1)Anderson Matssura e Elianai Vigon
(Foto: Henrique Mendes / G1)
Exploração
Em três meses de trabalho, sob uma jornada de até 22 horas em dias de desembarque, o cearense Anderson Matsuura, de 33 anos, diz que chegou a emagrecer 14 quilos. Atuando na embarcação como assistente de camareiro, ele conta que foi sofreu todo o tipo de pressão psicológica.
Inicialmente, Matsuura destaca que os funcionários eram obrigados a assinar folhas de ponto adulteradas, com carga horária definida pela própria empresa. "A companhia não pagava nada de hora extra. A gente também não podia descer [do navio] nas folgas. As pessoas tinham medo de denunciar, de reclamar. Muita gente adquiriu dívidas no Brasil para participar de treinamento e cursos específicos para atuar no navio", narrou.
Além de denunciar a carga horária exaustiva, Anderson Matsuura destaca que a própria mulher, que também atuava no navio, foi assediada na embarcação, como forma de constrangimento e humilhação. "Os oficiais davam em cima das nossas esposas. Caso fôssemos advertidos por reclamação, eles realizavam deduções nos salários", aborda.
Além de Matsuura, outra profissional da embarcação relata ter sofrido assédio moral. Atuando como camareira, a paulista Robert Inturn, de 27 anos, diz que mesmo trabalhando até 18 horas seguidas, chegou a ser chamada de "preguiçosa e vagabunda". "Não estamos aqui pelos 11 brasileiros que saíram do navio. Estamos aqui, expondo estes problemas, por todos que permanecem lá", defendeu.
Escravidão moderna
De acordo com Rafael Garcia, procurador do Ministério Público do Trabalho na Bahia (MPT/BA), as embarcações da MSC eram monitoradas há cerca de um ano. Por meio da aplicação de cerca de 175 questionários entre os funcionários, ele diz que foram constatadas irregularidades que confrontam as leis trabalhistas e os direitos humanos.
"Foram verificados relatos de jornadas exaustivas, ausência de folgas, ausência de intervalos e agressões às integridades físicas e psíquicas", destaca o procurador ao afirmar que a empresa defende que em águas internacionais a empresa não pode ser guiada por leis nacionais (brasileiras).
Sobre as características dos profissionais resgatados, que na maioria são universitários e bilíngues, Garcia afirma que esta é uma característica do trabalho escravo moderno. "Toda e qualquer atividade, se não tiver fiscalização, pode impulsionar características extremas de trabalho. Isso ocorre em qualquer ramo profissional. A busca pelo lucro, muitas vezes, não encontra barreiras", alertou.
Segundo Alexandre Lyra, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), do Ministério do Trabalho e Emprego, lidar com casos análogos o trabalho escravo em um meio jovem e instruído, é um desafio.
"Você não vai encontrar neste meio aquelas características comuns ao trabalho rural, por exemplo. É um trabalho em que isso [o excesso de carga horária] aparece de forma invisível. A foto deles no navio talvez seja linda, mas o meio onde o problema ocorre não descaracteriza a opressão. É trabalho escravo e ponto", definiu.
Lyra destaca que a operação no Brasil, por meio de visitação da embarcação, começou no Porto de Santos, no dia 16 de março. No mesmo local, o navio voltou a ser visitado em no dia 29 de março. O resgate  dos passageiros foi feito no Porto de Salvador, no dia 1º de abril. A operação só foi divulgada nesta sexta-feira (4), pois ocorria em segredo de Justiça. Dentre os profissionais recolhidos do navio estão paulistas, curitibanos, cearenses e baianos.
Leia abaixo a nota da MSC na íntegra:
"A MSC Crociere informa que durante a temporada 2013/2014, seus quatro navios que estiveram no Brasil, passaram por intensas e repetitivas inspeções por parte do Ministério do Trabalho e Emprego.
Os navios da MSC Crociere que operam em águas brasileiras empregam um total de 4.181 tripulantes, dos quais 1.243 são brasileiros.
Após análises detalhadas de milhares de folhas de documentação e conduzindo centenas de entrevistas com tripulantes, no dia 01 de abril de 2014 o Ministério do Trabalho e Emprego esteve a bordo do MSC Magnifica e alegou irregularidades na jornada de trabalho de 13 tripulantes brasileiros, solicitando-os a desembarcar. Destes, 11 aceitaram desembarcar, mas 02 se recusaram e decidiram continuar trabalhando a bordo.
A MSC Crociere está em total conformidade com as normas de trabalho nacionais e internacionais e está pronta para colaborar com as autoridades competentes. Sendo assim, a MSC repudia as alegações feitas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, do qual não recebeu nenhuma prova ou qualquer auto de infração."

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